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domingo, 11 de outubro de 2015

Cenas da Tela: A Escrita Como Fuga ou Libertação




Escrever é sempre libertador. Seja num caderno de papel, no computador ou tablet, enfim, independente da maneira como escrevemos, soltar a imaginação em escrita transporta as pessoas para outros mundos... E assim sempre será, mesmo que o papel um dia ceda lugar totalmente ao digital. Podemos criar estórias e também desabafar as nossas próprias experiências, boas ou ruins. Descrever festas de aniversário, cenas da primeira paixão, o Natal com aquele parente que não via há tanto tempo! Existem pessoas que usam o velho e bom diário como um amigo contra a tristeza e a Depressão. Soltam sua ira em tinta ou grafite naquele amigo sem boca, ouvidos e olhos. Confessam seus medos. Explodem sua raiva de forma tão voraz que aquele que o visse de longe pensaria ser um trabalho de psicografia (sim, quem tem raiva escreve depressa). Heroínas da vida real foram para as telas e são até hoje consideradas perturbadoras e fascinantes, ao mesmo tempo. Irresistíveis pessoas reais. 

Virginia Woolf, a famosa escritora inglesa, usou a escrita como terapia, escondida na casa de seu marido Leonard por ordens médicas, e passou bem durante algum tempo (pena que sua vida não tenha tido um desfecho feliz). Ouvindo vozes obscuras ou não ela seguia seus dias escrevendo o que hoje temos como exemplo de sua genialidade: seu trabalho literário. AS HORAS (THE HOURS), filme de 2002 dirigido por Stephen Daldry, guarda um exemplo do que pode ser chamado de a escrita como plano de observação e descoberta de si próprio. Nicole Kidman (arrebatando prêmios como o BAFTA e o Oscar de melhor atriz) deu vida a esta mulher complexa e fascinante, que tenta resgatar a si mesma, salvar-se. Vai para o subúrbio, longe da agitada Londres por uma melhor qualidade de vida. Não que Virginia tenha começado a escrever nesta época. Os apaixonados pela Literatura lembrarão que ela começou com contos no início do século XX. Mas naquele momento peculiar a escrita era o reflexo de quem Woolf procurava ser. Um espelho misturado no sofrimento da loucura e na autopunição da personagem, porém com uma esperança que renascia em nanquim e papel. Tentando relaxar em sua cadeira, as tardes com xícaras de chá e biscoitos. Os sobrinhos, ainda crianças, eram os filhos de sua irmã Vanessa Bell. Eles riam dela bem baixinho, quando flagravam a tia em conversa consigo mesma ou velando um passarinho morto. A espontaneidade assustadora da criança. Baseado na novela de Michael Cunningham, AS HORAS é o tipo de filme profundo em sentimento, daquelas películas que nos envolvem em longas reflexões sobre a vida e a morte. 
Nicole Kidman é Virginia Woolf em AS HORAS, 2002.



Existem ainda os que escrevem sobre o amor ou para o seu amor. Muitos roteiros de filmes foram lindamente desenvolvidos com o tema “cartas”, ainda retratando fatos reais sobre obras de artistas, sejam eles compositores, dramaturgos ou escritores.


Algumas heroínas trágicas do Cinema decidiram declarar seu amor não correspondido e enviar pelos correios, ao invés de guardar em um diário dentro da gaveta. Se a paixão não desse certo, ninguém poderia dizer que ao menos elas não tentaram! Diários, cartas e bilhetes tanto podem libertar o espírito sonhador quanto aprisionar alguém que não tem alternativa a não ser colocar no papel o que sente. Em A HISTÓRIA DE ADELE H(L’HISTOIRE D’ADELE H), Isabelle Adjani vive a personagem título, dirigida por Truffaut em 1975. Adele é filha do famoso escritor Victor Hugo, um gênio de sua época, que vivia em exílio por conta de seus ideais políticos. Ela usa as palavras como persuasão tanto para o objeto de sua obsessão amorosa, o Tenente Albert Pinson(vivido por Bruce Robinson) quanto para seus pais, quando escrevia a eles mentindo toda uma situação. Adele vivia em um mundo a parte, entre resmas de papel e tinta. Inventava para a família uma fantasia da qual só ela fazia parte: a de que Pinson a amava muito e se casaria com ela muito em breve. 
Isabelle Adjani como Adele Hugo, 1975.



Dentro de sua cabeça a negação da realidade era tamanha que por várias vezes blindava totalmente o desprezo e a frieza do rapaz. Ele jamais se casaria com ela, no entanto, Adele inventou a cerimônia através de palavras escritas e mandou pelos correios. Pedia agora para chamá-la de Madame Pinson, nome pelo qual era conhecida em Barbados, quando a esquizofrenia já havia deteriorado por demais sua mente. Durante muitos anos ela dedicou-se a seus jornais: diários em que só ela entendia o conteúdo. Parou de escrevê-los quando os traços da doença mental já haviam se tornado grave peso em seu presente e futuro.  Seguiu Pinson por várias partes do mundo, de 1855 até 1872, começando pela França. Passou três anos em Halifax, Canadá, sob um pseudônimo, disfarce que só ia embora quando se trancava no quarto dos Saunders. Lá, ela ficava absorta no seu planeta Pinson imaginário. Só os papéis conheciam essa Adele. Enquanto isso sua doença avançava e passou a andar pelas ruas como mendiga, rasgada e desnorteada. No caso dela, pode-se dizer que sua escrita a libertou e a aprisionou. Liberta da realidade que ela não queria aceitar. Presa por conta do sonho jamais realizado. Quando mandada novamente ao convívio dos Hugo estava aos cuidados de Madame Baa, a mulher que cuidou dela em Barbados, época em que sua loucura já despertava risos dos habitantes locais. Passou o resto de sua vida em uma instituição mental, perdida entre suas pinturas e escritas... Ou liberta através de toda aquela arte que a rodeava. Virginia Woolf e Adele Hugo sofreram um processo de intensa perturbação mental, cada uma dentro de sua época e história. Foram vidas permeadas pela inconstância e desequilíbrio. Mas também por uma incrível capacidade de sentir...




sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Cenas da Tela - Famílias em Conflito



Discordo quando alguém diz que o cinema serve apenas para entretenimento. Muitos filmes ao longo dos anos têm mostrado que o entretenimento pode estar ligado a um momento de reflexão. Incontáveis são os diretores que colocaram na tela grande problemas existentes na vida real. Situações de amor, ódio, intrigas, enfim, são tantos os assuntos que é impossível continuar a lista neste texto. Uma das coisas que mais mexe com a sociedade é a família. É fascinante observar as diferentes formações familiares no Cinema. Alguns filmes entraram para a História exatamente por valorizar esta questão tão delicada. Chaplin, Bergman, John Hugues, Arthur Penn e Robert Benton são alguns dos diretores que, de maneira profunda e bela conseguiram encantar gerações com as complexidades de uma família. A forma como um filme a retrata pode inspirar alguém, assim como fazer com que milhares de pessoas ao redor do mundo se identifiquem com essa beleza: sim, é difícil entender ou aceitar, mas existe algo de belo numa família complexa ou distorcida por fatos tristes. Os defeitos de um personagem dão o brilho especial ao que poderia ser perfeito aos olhos de muitos, porém monótono e entediante se colocado como num conto de fadas. Talvez seja por uma simples questão: a de que a perfeição não existe. Todo mundo tem problemas dentro de casa e é isso que acaba fazendo com que o belo apareça numa obra de arte.

Podemos pegar como exemplo SONATA DE OUTONO (AUTUMN SONATA). Filme de 1978 dirigido por Ingmar Bergman. Mais precisamente a cena em que finalmente Eva (Liv Ullmann) consegue um diálogo verdadeiro com sua mãe Charlotte (Ingrid Bergman). As duas brilhantes atrizes (Ingrid Bergman já com o câncer que seria fatal pouco tempo depois) teceram as dores de suas personagens e emocionam, com uma carga de verdade que chega a assustar o espectador. Um confronto do tipo que muda as vidas de mãe e filha para sempre. Uma coisa que poderia ter sido feita muito tempo atrás mas foi adiada: uma conversa franca. Eva é uma jovem mulher tímida e reprimida. Mora com o marido e recebe a visita da mãe para passar uns dias. Charlotte é uma famosa e radiante pianista e que para obter êxito em sua carreira não deu a devida atenção e amor que a menina tanto queria. A relação das duas é muito mais complicada ainda, pois a mãe enxergava a filha como um empecilho, um erro que a impedia de ir para frente. A garota nunca estava bonita e sempre incomodava. Cresceu na cabeça de Eva esse sentimento devastador de perda. A perda de alguém que sempre esteve ali, porém tão distante e fria, com um pensamento longe. 

Liv Ullmann e Ingrid Bergman em SONATA DE OUTONO.


Em BONNIE E CLYDE, de 1967, Arthur Penn apresenta um relacionamento que chega ao público de maneira totalmente repentina. Em momento decisivo da história, o casal procurado pela polícia Bonnie Parker(Faye Dunaway) e Clyde Barrow (Warren Beatty) se escondem na casa do pai de seu colega de gangue C.W Moss (Michael J. Pollard). Já sabendo da má fama de seu filho, Ivan Moss (Dub Taylor) dá abrigo ao casal normalmente, como se nada de grave estivesse para acontecer e como se realmente fosse favorável à vida que C.W e seus comparsas levavam. Querendo saber o que estava acontecendo de fato, ele chama o menino na cozinha para uma conversa, na surdina. Pollard, com uma das melhores atuações do filme age debochado e cínico, com seu personagem ali, de frente para o pai, tomando sorvete e dando pequenas risadas. Antes de entrar para o famoso grupo criminoso, C.W Moss era um mecânico. Não dá pra saber através do filme como era o relacionamento dos dois. Aparentemente podemos ver que seu pai não aprova aquela conduta nem a enorme tatuagem em seu peito. Ele mostra o desenho sugerido por Bonnie e então Ivan explode em raiva batendo no filho. Ele diz com todas as letras que se ele continuasse no bando acabaria morto ou preso. C.W é mostrado no filme como um garoto aventureiro. Conseguiu escapar graças ao acordo feito com seu pai para emboscar o casal. Ivan se encontra com a autoridade principal envolvida no caso e entrega Bonnie e Clyde. O rapaz, que era de confiança de seus amigos bandidos arma de não seguir na viagem. Lógico que os dois, desesperados por fuga, não vão esperá-lo. Seguem rumo à morte. BONNIE E CLYDE marcou não só o início de uma bem sucedida carreira para seu elenco. Também surgiu com um novo conceito em fazer Cinema em Hollywood, com outro padrão de beleza para as estrelas, roteiro marcado pela ação do início ao fim e uma nova forma de apresentar talentos ao público. Porém continuava uma receita que já tínhamos visto em HIGH SIERRA, de 1941, onde Humphrey Bogart é o fora da lei: mostrar o bandido não só como o vilão, mas com várias vertentes de personalidade. O bandido que ama, tem um passado, pai e mãe.

Dub Taylor e Michael J. Pollard em BONNIE E CLYDE.


PRETTY IN PINK (A GAROTA DE ROSA SHOCKING) é bem mais que um drama adolescente. Lançado em 1986, foi enorme sucesso de público repetindo o resultado anterior de CLUBE DOS CINCO (THE BREAKFAST CLUB). A ruivinha Molly Ringwald era novamente a aposta do diretor John Hugues para esta produção. Estrela da juventude nos anos 80, a atriz teria agora a chance de conquistar o público com um personagem mais rebuscado, cheio de curvas dramáticas. Andie Walsh é uma jovem pobre. Trabalha em uma loja de discos e faz suas próprias roupas. É o tipo de personagem totalmente inspirador, que não usa sua pobreza como muleta para o vitimismo, nem se considera infeliz por isso. Sofre bullying de seus colegas ricos no colégio em que estuda, mas não se sente coagida por eles. Seu pai Jack (o ótimo ator Harry Dean Stanton) sofre de Depressão pelo abandono da esposa. Por conta disso tem dificuldade de sair de casa para procurar emprego, mesmo com o apoio da filha. A relação dos dois é muito bonita e seria bem melhor se Jack conseguisse se desvencilhar do fantasma de sua ex. Numa cena emocionante Andie confronta seu pai pedindo para ele esquecer aquela mulher, que saiu de casa por que quis e por que não gostava da família. Pontuou que a mãe não gostava dela e que ela sempre sentiu isso (os filhos sentem quando são rejeitados). Ele resiste à repreensão, os dois choram, gritam um com o outro e por fim se abraçam. Era o choque que ele precisava. Ao contrário do exemplo de BONNIE E CLYDE (até por conta do contexto de cada roteiro), essa história de pai e filha foi muito bem trabalhada pelo diretor, com ricos detalhes. 

Harry Dean Stanton e Molly Ringwald em PRETTY IN PINK.

Agora voltamos para 1921, ano em que foi lançado O GAROTO (THE KID), de Chaplin. Época muito difícil para a mulher na sociedade, especialmente para mães solteiras. A personagem da bela Edna Purviance tenta entregar seu filho recém nascido para um lar de caridade e não tem sucesso. Desesperada, com uma criança nos braços que não poderá criar sozinha, toma uma decisão drástica, da qual se arrependerá pouco tempo depois: deixa-o na sozinho, na esperança de que a pessoa que o encontrar cuide do bebê. Chaplin, como o morador de rua Carlitos é esse homem que acha a criança, exita, achando que a mãe estaria por perto mas por fim resolve ficar com ela. Cada cena é uma riqueza à parte, pela genialidade de Chaplin. Com sua ampla e bela visão do pobre em condições miseráveis num mundo cosmopolita, consegue trazer à audiência a torcida para que o menino (já crescido e interpretado por Jackie Coogan) fique com ele no final. Dentre tantas lutas, em meio ao drama realista e a comédia, chega a temida cena em que o garoto é tirado dele. O desespero dos dois na separação não dura muito. É de fácil compreensão que o garoto não tenha voltado para os braços da mãe pelo preconceito vivido pela mulher no início do século XX. Mãe solteira era inaceitável e a reconstrução da vida era algo extremamente difícil de acontecer. Muitas mães abandonaram seus filhos sem desejar fazê-lo, morreram tentando abortar e quando conseguiam realizar o aborto, mantinham a boca fechada para não sofrer as terríveis consequências do mundo patriarcal. 


O garoto Jackie Coogan com o pai Carlitos (Chaplin) e abaixo, observando a mãe(Edna Purviance), sem saber.